domingo, 18 de outubro de 2009

QUAL O PAPEL DA LEITURA NA CONSTRUÇÃO DA COMPETÊNCIA DISCURSIVA DOS JOVENS E ADULTOS?

A constatação da existência de uma prática de leitura ainda bastante confusa ou quase inexistente na Educação de Jovens e Adultos (EJA) - na escola ou fora dela -, impulsionou-me à realização de uma pesquisa[1] sobre o fenômeno leitura na EJA, acreditando que seus resultados podem fornecer elementos para a (re)fundamentação da prática da leitura de textos verbais junto aos jovens e adultos sem perder de vista os propósitos de uma educação verdadeiramente popular. O objetivo maior da pesquisa esteve voltado para identificar o papel da leitura de textos verbais em língua portuguesa na construção da competência discursiva dos jovens e adulto. Para isso, no percurso investigativo, procurou-se manter um diálogo produtivo entre diversas áreas do conhecimento, o que, certamente, oportunizou uma análise mais global do fenômeno leitura na EJA.

Desse modo, buscou-se compreender o atual contexto histórico em que a EJA vem se dando, e, mesmo numa breve análise, foi possível concluir que vivemos uma conjuntura cada vez mais desumanizante. Isso implica que, agora mais do que nunca, a EJA, enquanto educação popular que se dá ao longo da vida, terá que construir estratégias de ação quantitativa e qualitativamente mais competentes aos propósitos de concretização de uma sociedade humanamente digna e igualitária.

Nesse cenário, o trabalho interdisciplinar com a língua portuguesa na EJA, sobretudo a atividade da leitura, emerge como possibilidade de ampliação das condições de participação social dos jovens e adultos. Buscando promover a construção da competência discursiva desse tipo de aluno que, mesmo relativizada pelas condições enunciativas, implica o desenvolvimento da capacidade de produzir e compreender textos apreendendo o seu funcionamento discursivo, a EJA estará contribuindo não só para a elevação do nível de letramento dos sujeitos populares, mas também para a sua formação como sujeitos críticos e socialmente atuantes. Esse processo, no entanto, para ser coerente com os princípios político-pedagógicos da Educação Popular, não poderá aportar em concepções restritas de língua.

Deverá, ao contrário, fundar-se numa concepção mais ampla de língua, sem perder de vista o seu caráter de evento interlocutivo, portanto contextual e interativo. Vale dizer: como uma “sistematização aberta” (variável, heterogênea e contextual), forma ou processo de dizer/agir (re)construída(o) pelos sujeitos – sujeitos esses que nem são totalmente livres nem assujeitados - na dinâmica social - cultural-histórica-política-ideológica, materializando-se no discurso/texto vivificado no diálogo enunciativo. Conseqüentemente, a competência discursiva a ser construída pelos jovens e adultos não pode ser entendida como uma competência que se reduz ao “domínio” do português padrão (oficial). É necessário, entre outras coisas, conhecer/analisar diversas variantes lingüísticas e a multiplicidade de gêneros textuais existentes. Contudo, sabendo que o português (oficial) padrão é um importante “instrumento” na luta pela construção de uma sociedade justa e igualitária, postulo que a EJA não poderá perder de vista a garantia de apreensão daquela variante, principalmente pelos sujeitos populares. Trata-se, pois, do resgate da heterogeneidade lingüística como um movimento à inter/multiculturalidade dando solidez ao princípio ético-democrático de respeito às diferenças que nega a possibilidade de qualquer tipo de discriminação ou preconceito, seja ele lingüístico(a) ou não.

Nessa linha de entendimento, a atividade de leitura, sobretudo de textos verbais em língua portuguesa, aparece em cena, não para extração de informações objetivas, mas sim para conformar um processo prazeroso, significador e libertário de construção de sentidos que extrapola os muros da escola. Seu papel no desenvolvimento da competência discursiva dos jovens e adultos é fundamental e indispensável. É justamente nele e através dele que o sujeito recolhe, criticamente, elementos para o seu dizer e como dizer o que pretende. Na medida em que o sujeito constrói seu próprio discurso, constitui-se como tal e age sobre o mundo.

Por isso mesmo, aproveitando nossas histórias de leitura, não podemos deixar de dizer, com Geraldi[2] (1994, p. 84), que “numa sociedade onde a leitura não é uma prática social, ler na sala de aula para construir possibilidades, construir significações, torna-se perigosa subversão. Lutar por ela é lutar, onde se está, contra o status quo”. Assim sendo, a EJA não pode ausentar-se desse processo de luta, já que contribuir na construção de uma realidade sem exclusão, elitismo e discriminação é o fim último dessa instância educativa que se pretende – porque possível e necessária ­– contra-hegemônica.

Portanto, se desejamos garantir aos jovens e adultos a apreensão de saberes necessários ao seu desenvolvimento por inteiro, a leitura deverá ter sua concepção revista, valorizada e mais bem trabalhada nos espaços educativos da EJA. Isso envolve, sem dúvida, a criação de valores éticos para que homens e mulheres, jovens e adultos, possam (con)viver com dignidade e de fato possam ser felizes.

Dessa forma, cinco frentes de ações podem ser aqui apontadas como urgentes e necessárias na busca da garantia de uma EJA formadora de sujeitos leitores que não só desvelam, mas agem sobre o mundo, transformando-o, transformando-se. A saber:

- uma maior articulação entre as áreas de conhecimento que tomam a linguagem como objeto de estudo e/ou que tragam contribuições para o seu ensino. Afinal, a leitura é um objeto multifacetado. Seu ensino e sua aprendizagem envolvem, ao mesmo tempo, diferentes dimensões (psicológica, lingüística, social, histórica e política) desse objeto. Apreendê-la, pois, demanda diálogo entre as diversas áreas de conhecimento;

- um maior investimento em pesquisas sobre leitura junto aos jovens e adultos e um maior acesso aos resultados de pesquisas existentes sobre a EJA. Isso contribuirá para uma melhor compreensão da forma como os sujeitos jovens e adultos aprendem, em especial, como aprendem a ler, o que desejam aprender/apreender e as implicações que tudo isso assinala nos processos de conhecer, de ensinar e de conviver democraticamente;

- implementação de uma política de leitura, sobretudo na EJA, que não só enfatize o gosto de ler, mas também garanta o direito social de ler para aprender, recíproca e continuamente, ao longo da vida;

- promoção de atividades permanentes de capacitação dos educadores de jovens e adultos. Numa dinâmica de articulação constante entre teoria e prática pedagógica, tais atividades deverão possibilitar, não só o desenvolvimento de uma compreensão mais consistente do papel político e pedagógico, requerida aos profissionais responsáveis e/ou que de maneira “indireta” participam da formação de leitores jovens e adultos, mas também a elaboração de propostas de trabalho em que a leitura apareça como questão central nas diversas áreas do currículo de EJA. Isso quer dizer que a atividade de leitura, bem como a reflexão/ação sobre o fenômeno leitura na EJA, seria oportunizada tanto aos professores de língua portuguesa, como aos educadores e educadoras das diversas áreas de conhecimento que fazem uso da língua materna no tratamento de seu(s) objeto(s) de ensino (isto é, que exigem a compreensão e a produção discursiva sobre um determinado campo de estudo) e aos profissionais de setores de apoio à prática pedagógica (diretores, coordenadores pedagógicos, coordenadores de biblioteca, coordenadores de central de tecnologia, etc.);

- produção de materiais didáticos destinados à EJA. Tais materiais poderiam, numa perspectiva interdisciplinar, tratar a leitura como construção de sentidos a ser trabalhada não apenas nas aulas de língua portuguesa, mas em todas as disciplinas do currículo de EJA. Além, é claro, de respeitar as especificidades da EJA, o que inclui sua proposta político-pedagógica de emancipação dos sujeitos populares e de transformação social.

Por fim, gostaria de ressaltar que a (re)construção de uma EJA promovedora mais e mais da satisfação das necessidades culturais das classes trabalhadoras exige de seus educadores não só o compromisso ético e político com a dignidade humana, mas também uma postura investigativa permanente na busca de respostas que garantam um processo educativo substantivamente popular. Tal postura, acredito, possibilitará aos sujeitos envolvidos nesse processo a compreensão de que as possíveis saídas para os problemas enfrentados na EJA não estão nas mãos de alguns sujeitos, em especial. Estão, sim, no conjunto das relações sociais e nas ações criativas e transformadoras por parte da totalidade de seus atores. Isso inclui, sem dúvida, o professor de EJA que, tendo incorporado e assumido sua própria mudança, avalia/reinventa sua práxis educativa, cotidianamente, sem permitir que visões ingênuas e imobilizadoras do tipo “faça pelo que ganha” sejam transformadas, por pessoas inescrupulosas, em pretextos como “ganha pelo que faz”, isto é, pouco e ruim.


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* Artigo publicado na Revista Fênix, ano 2, nº1, p. 63-64, 2002.
[1] Pesquisa teórica intitulada “A construção da competência discursiva na EJA: o papel da leitura de textos verbais em língua portuguesa. Dissertação (Mestrado em Educação Popular) – CE/ UFPB, 2003, João Pessoa.
[2] GERALDI, A. W. A leitura na sala de aula: as muitas facetas de um leitor. In: MARINHO, Jorge Miguel et al. Série Idéias, n.5. 2. ed. São Paulo: FDE/Diretoria de Projetos Especiais, 1994. p. 79-84.

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